segunda-feira, 15 de outubro de 2012

LUZES NA ESCURIDÃO




Grupo Galpão inova e subverte com o espetáculo Eclipse

            O uso da luz como metáfora para a razão e para o saber permeia há séculos os discursos produzidos no ocidente. Contudo, no espetáculo Eclipse, o Grupo Galpão propõe uma nova associação. Após presenciarem um eclipse solar que se prolonga por mais tempo do que o esperado, as personagens da trama se vêm em uma situação de escuridão inesperada. O novo estado se mostra inquietante, porém, profícuo à reflexão e à produção de afirmações sobre a vida. Dentro da obscuridade, são reveladas ao espectador nuances profundas e existenciais dos seres humanos. Contudo, o caminho em direção ao enfrentamento de tais questões não é perseguido ao acaso, a obra do dramaturgo Anton Tchekhov serve como guia.
            Eclipse é, de fato, uma ode à obra desse conhecido escritor. Tchekhov nasceu em Taganrog, na Rússia, em 1860. Foi médico, contista e dramaturgo. Em sua curta vida, viveu apenas 44 anos, deixou uma extensa quantidade de contos célebres, como A Dama do Cachorrinho, assim como obras primas do teatro, como A Gaivota, Tio Vânia e As Três Irmãs. Sua obra influenciou grandes artistas do século XX, como Virginia Woolf e James Joyce.
            O autor foi uma dos precursores na utilização da técnica do fluxo de consciência. Suas personagens nos revelam seus dilemas e angustias interiores. Elas também contam umas para as outras, de maneira despretensiosa e cheia detalhes, as passagens mais centrais de suas vidas. Durante a construção dessas micronarrativas, apresentam problemáticas que saem da esfera individual e se transmutam em questionamentos basilares para grande parte das pessoas. Tratam, por exemplo, do caos, da felicidade e da fé. Quase sempre, confrontamo-nos com perguntas que não apresentam respostas, cabe ao público decidir o que fazer com elas. A falta de respostas aos questionamentos é proposital, Tchekhov não pretendia doutrinar seus leitores e espectadores, mas levá-los à reflexão.
            O espetáculo, constituindo através da junção de fragmentos de diversas obras do autor, transmite com primazia essas características de Tchekhov. Eclipse apresenta uma narrativa construída de forma caleidoscópica, onde somos apresentados a diversas personagens que, apesar de estarem em uma mesma condição, possuem questionamentos contraditórios, que partem de pontos de vista diferentes e produzem uma sinfonia desalinhada. Em diversas situações, elas não conseguem se comunicar de forma alguma, falam ao mesmo tempo ou partem para a agressão física. A sucessão de relatos a que somos expostos se complementam apenas em nível abstrato, tecendo uma reflexão sobre traços basilares da condição humana. Não saímos do espetáculo com nenhuma resposta clara ou formula de bem viver, mas com um arsenal de perguntas sobre nossa própria vida.
            O espetáculo, em cartaz no SESC Vila Mariana até o dia 14/10, foi encenado pela primeira vez no final de 2011. Ele foi desenvolvido dentro do projeto do Grupo Galpão chamado Viagem a Tchekhov, do qual faz parte, também, Tio Vânia (aos que vierem depois de nós). Enquanto esse último explora mais elementos do teatro realista, Eclipse trabalha com uma estética inspirada pelos ditames de uma vanguarda artística russa do início do século XX chamada Suprematismo. Nesse ponto, o grupo se distancia do lugar comum, revelando a originalidade e o potencial criativo que o caracterizam como um dos mais importantes grupos de teatro do país há exatos 30 anos, comemorados em 2012.
            O Suprematismo foi iniciado pelo pintor Kazimir Malevich e propõe o uso de formas geométricas e a busca de sentimentos puros, os quais não apresentam finalidade prática. Uma das obras desse pintor que funda o movimento é Quadrado Negro Sobre Fundo Branco. Para entendermos como ocorre o diálogo estético do Suprematismo com Eclipse, podemos tomar uma das passagens do espetáculo onde se realiza um intrigante discurso sobre a importância do talento, outro tema central na obra de Tchekhov. A discussão é feita com base na análise de um quadrado negro sobre um fundo branco, que fora supostamente pintado por uma das personagens. Somos instigados a refletir sobre a validade do fazer artístico em comparação às atividades que possuem finalidades ditas úteis, como semear o solo e cuidar de doentes. Ao mesmo tempo, discute-se sobre como podemos avaliar as escolhas realizadas ao longo da vida. Constrói-se, portanto, uma composição cênica original, com potenciais estéticos e discursivos efusivos, cheios de significados e camadas de interpretação.   
            Esse tipo de abordagem seria impensável na época das primeiras montagens de Tchekhov realizadas pelo notório diretor Stanislavski, na Rússia do final do século XIX. Eclipse revela, portanto, o trabalho constante do Grupo Galpão de buscar de novas linguagens e de reavivar conteúdos clássicos e temas universais sob a ótica de nosso momento histórico e social.  O espetáculo foi dirigido pelo russo Jurij Alschitz, que procurou pensar qual seria a estética e o tipo de encenação que o dramaturgo russo teria utilizado se estivesse produzindo o espetáculo em nossa época.
              Analisada dentro de um mundo onde o excesso de discursos e estímulos vazios é a condição constante, a peça revela-se como uma oportunidade única para subvertermos nossas concepções habituais de saber e de darmos asas para a gaivota de nossos desejos e potencialidades. Ao usarmos a escuridão exterior como pretexto, somos tocados por um momento de iluminação interior que, embora contraditório e muitas vezes sem sentido, pode se materializar em um percurso de vida incrivelmente arrebatador e original. 

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Sonetos


Soneto de formação

Abri os olhos sem esperar por nada, acreditando que não possuo poder sobre as coisas.
Porém, o caos também possui sua mágica e me presenteou com um momento.
Estava ali, a realização que eu tanto esperava, colorida e com sabor de novidade.
Oh! como quero continuar para sempre sendo!

Após piscar os olhos, ele ainda continuava no mesmo lugar, mas levemente diferente.
Tive de mudar de posição para não perder de vista tamanho gozo.
Minhas manobras obtiveram sucesso, continuava a me lambuzar no prazer inesperado.
Oh! como eu espero que tudo pare de mudar, enfim!

Um epíteto para o inominável arcano.
Um anelo de esperança fugaz.
Encerro no consciente um espírito temeroso.

Por que não ceder ao lépido?
Ou seja, por que querer mais do que o momento?
Sou narciso que recusa olhar as águas do rio e espera apenas satisfação momentânea.


Soneto deformação

Uma azia expele regurgitos de uma manhã vazia.
Pensamentos rasos advindos da incompreensão da dor de outrem perturbam,
Estou cativo, como serrar os grilhões da gravidade com a força do pensamento?
Oh! como é triste o fado de quem não sabe não ser.

As tragicomédias dramáticas da polifonia de narrações lapidam minha poesia
A tentativa de transcender o eu se mostra frustrada, abismaria doce ignorância.
Brinco de ser alguém apenas por que não sou o outro, quão estruturada é a analogia?
Oh! como é cabal a existência despropostiada, já nasce alcançada.

Um homem lê um livro de receitas.
Ouve-se um sim ao pé do altar.
Limpam-se remelas que comprovam o sono bom.

Por que não sucumbir ao inequívoco?
Ou seja, por que não o fácil e o óbvio?
Finalizo por figurar como um falso que floreia de forma fugidia a fatalidade frígida do fim. 


quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Sem títulos

Hoje abdiquei da razão e da emoção.
Sou apenas um brinquedo nas mãos da natureza.
Não sou dionisíaco, apolíneo, cristão, humanista, relativista ou existencialista.
Sou apenas mais um na lista.
Aquele que nunca pensou e sempre sentiu.
Aquele que sempre pensou e nunca existiu. 

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O breve e o profundo




Ao acessarmos um portal de noticiais na internet notamos que, diferentemente dos jornais tradicionais, o que se apresenta é uma coleção de manchetes. Não existe texto que ultrapasse o tamanho médio de um post do twitter, 144 caracteres. Caso optemos por acessar uma das notícias, em muitos casos, somos direcionados a meros parágrafos sem informação alguma complementar. Tal comunicação telegráfica incomoda, especialmente, a pequena parte de leitores mais eruditos, os quais pedem por mais profundidade e fôlego nos textos jornalísticos. O veredicto é de que estamos nos tornando uma sociedade de analfabetos funcionais que optou por ignorar a leitura.

Contudo, alguns dados chamam a atenção. O mercado literário brasileiro nunca foi tão grande. Apesar de estarmos bem atrás de países como Argentina e Chile, possuímos cada vez menos analfabetos e os lucros das grandes livrarias são cada vez maiores. Basta caminhar pelos ônibus e metrôs das grandes cidades para perceber o quanto aumentou o número de leitores.

Outro fato que devemos observar é a quantidade de horas que uma pessoa passa lendo. Antes da internet, apenas algumas horas do dia eram dedicadas à leitura de jornais, revistas ou livros. Um trabalhador de escritório passa oito horas em frente a um computador, lendo quase o tempo todo. Dessa forma, nunca se leu tanto. A questão importante neste contexto não é o quanto estamos lendo, mas o que estamos lendo.

Nos círculos sociais, nas seleções para concursos públicos e empregos e durante as emissões midiáticas, os indivíduos são cobrados constantemente por informação. Devem possuir ao menos um mínimo de conhecimento sobre diversos assuntos, caso queiram se localizar minimamente nas conversas e testes aplicados. Como não é possível saber detalhadamente sobre tudo, a escrita telegráfica, nesse contexto, se torna fundamental. Ela fornece o embasamento mínimo para que seja possível caminhar pela via congestionada da cibercultura.

Porém, os eruditos estão corretos quando reclamam por mais profundidade. Quando queremos entender mais detalhadamente os aspectos de uma situação, faltam reflexões mais elaboradas e pontos de vista mais diversificados. Entretanto, o problema não é o tamanho das chamadas e links, essências em nosso contexto, mas a falta de fontes de informação mais sérias, alternativas a essas formas mais concisas.

Estamos lendo muito mais, mas ainda continuamos a fazer parte de uma sociedade que não tornou a educação uma prioridade, da mesma forma que fazia antes do surgimento na internet. Não foi a tecnologia que tornou-nos superficiais, o sistema educacional e econômico nos deixou assim. As escritas telegráficas apenas respondem a tais anseios.

Caso queiramos a divulgação de reflexões mais consistentes na internet, precisamos focar na construção de cidadãos críticos e bem formados. Dessa forma, aumentaremos cada vez mais o público para esse tipo de texto e, consequentemente, sua quantidade. O verdadeiro desafio é concentrar o interesse de nossos vorazes leitores em leituras de mais fôlego que consigam conviver harmoniosamente com as escritas telegráficas. O foco da crítica deve ser, portanto, quem lê, não o material lido. 

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Tratado desinteressado sobre o ânimo


Faltou energia.
Minguaram as gotas de serotonina.
Todas as portas abertas em todos os corredores desbravados possuem espelhos que assustam, não oferecem respostas.
Acabou instantaneamente o sentido que fora construído de forma vagarosa.
A dura crueldade do quotidiano corrói as ingênuas formas de esperança que foram arquitetadas pela mente prepotente do homem.
Ganha significado a palavra pessimismo e seu antônimo é impronunciável, ofende os ouvidos.
As palavras amorais do filósofo-poeta ganham algum significado e o chão forrado de niilismo vai se abrindo, nada resta.
Emerge a figura do homem deste tempo com imagem tratada em computador. O ideal se materializa através do virtual.
Quanta falta de liberdade tem o ser com livre-arbítrio. Ou se alista e vira soldado do consumo ou se arrasta pelo escuro manifestar underground.
A vontade é apenas aquela de escapar do seu eixo e de fingir que não nasceu. Fadas embriagadas e chapadas cheiram a última carreirinha de vidro moído misturada com felicidade.
Mas espere, o instinto não vacila. A dor parece ser companheira ancestral e o amanhã a mais alucinante das drogas já criadas pelo moderno.
O ritmo cíclico dos eventos também apazigua o bicho, deixa-o tonto com a ideia de destino.
Gotas virais de energia restam e se multiplicam com lenta insistência.
O talvez é a maior manifestação do caos na vida e sua fonte infinita de energia.
Amanhã, outra vez, depois, quem sabe.
A covardia tomou conta do homem-máquina, agora ele lê o horóscopo e acredita em um futuro melhor. 

sábado, 18 de fevereiro de 2012

BBB - Bichas, bofes e bonecas.

Não tenho acompanhado as últimas edições do reality show Big Brother. O formato do programa já não desperta nenhum tipo de reflexão nova ou, nem mesmo, risadas despretensiosas. Já faz tempo que percebemos a vontade do ser humano de olhar e ser olhado e, se possível, de poder julgar e sentenciar posturas e opiniões alheias. Quando analisamos o comportamento da população GLBT, não é nada diferente.

De forma cada vez mais evidente, a sociedade brasileira aceita a expressão de pensamentos, idéias e identidades diferentes relativas à sexualidade em suas ruas, bares e outros ambientes de socialização. Os gays sentem-se mais a vontade para olhar pessoas que não se parecem como eles e serem olhados. Dentro desse grupo, quem olha e é olhado costuma-se agrupar em pequenos grupos.

Encontramos as bichas, com suas calças apertadas, cabelos arrumados, alargadores e língua afiada. Os bofes e seus músculos, roupas de grife e acessórios caros. As bonecas e a exacerbação dos traços que tradicionalmente atribuímos ao feminino. Ele tem usado e abusado da estereotipização, se colocando em uma situação mais cômoda em meio a um ambiente onde todos estão prontos para julgar e serem julgados.

Tais arquétipos urbanos ligados à sexualidade servem, portanto, como ambientes de proteção em meio a uma sociedade que não está ainda totalmente preparada para o diferente. Nos sentimos desconfortáveis quando não conseguimos colocar as pessoas em uma categoria familiar, quando não podemos pretensiosamente prever suas posturas e valores. O próprio Big Brother transforma constantemente seus participantes em tipos, como, o cowboy, a piriguete ou a nerd.

Notadamente, o ambiente é muito mais tolerante do que aquele encontrado no final do século XX. Porém, podemos ir muito mais além, criando relações sociais onde as individualidades sejam realmente respeitadas e não exista intolerância e discriminação de qualquer tipo. Dessa forma, teremos uma sociedade realmente igualitária quando conseguirmos olhar e sermos olhados sem a proteção de símbolos fáceis e imediatos de identificação ou, mesmo, sem a proteção de uma tela de TV. 

Não pretendo, de forma alguma, propor a criação de redes de significação que ultrapassem inteiramente o grupo. Somos seres sociais e criamos nossos valores e símbolos trocando com outras pessoas. Apenas quero reforçar a escassez de modelos e sua repetitividade. Ainda operamos que poucas categorias de identificação, por insegurança e repressão. Uma sociedade realmente inclusiva, pode abranger milhões de manifestações e formas de domesticação de corpo, não limitando-se a pequenos grupos, previsíveis e, no caso da sexualidade, que repetem à exaustão conceitos como feminino e masculino, bicha e bofe e piriguete e pegador.