Fleshdance e a dança através dos pulmões
De que maneira a configuração
econômica e social atual se reflete em nossos corpos? Seria possível subvertermos
essa relação através da dança? A partir desses questionamentos nasce o
espetáculo Fleshdance, produzido pelo núcleo Artérias de dança. Composto por
três jovens dançarinas, o espetáculo convida o público a subir ao palco e a travar
de perto um diálogo sobre consumo, corpos femininos e órgãos internos. As
dançarinas enfrentam essas questões instigando o espectador através de olhares,
suspiros, gestos bruscos e movimentos pouco familiares. Enquanto participa de
uma experiência que descontrói a ideia habitual de corporalidade, o público é atingido
por uma sucessão de imagens em vídeo com mulheres ocidentais, especialmente as
que se enquadram no atual padrão de beleza.
O espetáculo faz parte de um
conjunto de coreografias denominado Trilogia
Líquida, formado pelas apresentações Ruído
5.1, de 2007, e Fronteira Móveis,
de 2008. A trilogia foi inspirada na obra do pensador polonês Zygmunt Bauman,
autor do renomado livro Modernidade
Liquida. A partir do final do século
vinte, Bauman discute quais são os aspectos que caracterizam a modernidade da
época. Ele afirma que, a partir desse período, o capitalismo ganha um dinamismo
sem precedentes. As trocas se intensificam e passamos a possuir liberdade
apenas para consumir. A vida passa a ser regida pelo consumo e é através dele
que nos significamos e que determinamos como será nossa relação com os outros.
Segundo Adriana Cechi, coreógrafa e
diretora do espetáculo, o ato final da trilogia é uma tentativa do grupo de
resistir aos atuais padrões corporais da sociedade de consumo. Especialmente no
que toca o modo feminino de domesticação do corpo, estritamente ligado à
aquisição de bens e serviços em prol de um padrão beleza. Ela relata que
durante uma viagem ao Marrocos encontrou mulheres que usavam a burca. Foi quando
percebeu que as mulheres ocidentais também tinham sua versão da indumentária,
as normas de conduta e beleza. Durante Fleshdance, somos interpelados por
mulheres que querem transgredir aos condicionamentos estabelecidos. Elas caminham de modo deselegante, se
contorcem em movimentos assimétricos e tomam conta do espaço, dando vazão às infinitas
possibilidades do corpo.
Paralelamente ao estudo da obra de
Bauman, o grupo se dedicou a aprofundar seu conhecimento sobre os órgãos e a
maneira como influenciam os movimentos. Com base na pesquisa desenvolvida pelo
Body-mind Centering de Massachutes, nos Estados Unidos (Principalmente o Livro Sensing, Feeling and Action),
desenvolve-se uma coreografia que abre mão da premência dos ossos e dos
músculos para buscar em rins, coração e intestino sensações e impulsos que
possam reverberar pelo corpo.
Estamos diante de uma coreografia
que abre mão de movimentos que se concretizam através de vetores. Não se trata,
portanto, de um corpo que desenha linhas no espaço, mas que se expande em três
dimensões e toma conta do ambiente ao aumentar de volume. As dançarinas
projetam-se e abarcam o que lhe circunda. Elas desenham uma dança hipnótica que
abdica de qualquer precisão pré-concebida e conferem vida e vazão às vontades dos
órgãos, pedindo que dialoguem com o exterior e transmitam o que queiram dizer.
Mais especificamente, Fleshdance (ou
a dança da carne, em uma tradução literal), se releva como um estudo sobre os
pulmões. O espetáculo nos mostra como o respirar pode influenciar a forma como nos
colocamos no mundo. Observa-se um jogo cênico onde espectador e artista entram
em relação. A troca ocorre quando nos damos conta de que o ar que um de nós expele
é o mesmo ar que o outro respira. Visivelmente, se cria uma relação de interação
ao mesmo tempo inusitada e perturbadora e que contrasta com as relações que
habitualmente mantemos com os outros citadinos. Será redundante apontar,
portanto, que a cada apresentação do grupo um novo jogo é estabelecido.
Ao juntarmos essas duas inspirações,
uma mais técnica e outra mais teórica, perceberemos que se trata de um
espetáculo onde os corpos das dançarinas se desprendem de seu uniforme social
de posturas, olhares e respirações socialmente orientado. Revela-se ao
espectador como o homem urbano evita respirações mais profundas, pois deseja
evitar a troca com os milhões de desconhecidos da metrópole. Também se descobre
como nosso corpo se limita a movimentos previsíveis e de fácil codificação, de
forma a maximizar a padronização de posturas e agilizar a troca de mercadorias
e bens.
Fleshdance cria um estado de
inquietação onde o simples respirar se transforma em uma ação complexa e inquietante.
Propõe corpos que possam resistir a um mundo que quer nos transformar em seres
robóticos, homogeneizados e indiferentes aos outros. Transforma o ar que
circunda o palco para que seja respirado pelo publico e possa transformar de
alguma forma a maneira como nos colocamos no mundo do consumo.
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