terça-feira, 5 de março de 2013

POR UMA MUDANÇA DE ARES


Fleshdance e a dança através dos pulmões  


            De que maneira a configuração econômica e social atual se reflete em nossos corpos? Seria possível subvertermos essa relação através da dança? A partir desses questionamentos nasce o espetáculo Fleshdance, produzido pelo núcleo Artérias de dança. Composto por três jovens dançarinas, o espetáculo convida o público a subir ao palco e a travar de perto um diálogo sobre consumo, corpos femininos e órgãos internos. As dançarinas enfrentam essas questões instigando o espectador através de olhares, suspiros, gestos bruscos e movimentos pouco familiares. Enquanto participa de uma experiência que descontrói a ideia habitual de corporalidade, o público é atingido por uma sucessão de imagens em vídeo com mulheres ocidentais, especialmente as que se enquadram no atual padrão de beleza.
            O espetáculo faz parte de um conjunto de coreografias denominado Trilogia Líquida, formado pelas apresentações Ruído 5.1, de 2007, e Fronteira Móveis, de 2008. A trilogia foi inspirada na obra do pensador polonês Zygmunt Bauman, autor do renomado livro Modernidade Liquida.  A partir do final do século vinte, Bauman discute quais são os aspectos que caracterizam a modernidade da época. Ele afirma que, a partir desse período, o capitalismo ganha um dinamismo sem precedentes. As trocas se intensificam e passamos a possuir liberdade apenas para consumir. A vida passa a ser regida pelo consumo e é através dele que nos significamos e que determinamos como será nossa relação com os outros.
            Segundo Adriana Cechi, coreógrafa e diretora do espetáculo, o ato final da trilogia é uma tentativa do grupo de resistir aos atuais padrões corporais da sociedade de consumo. Especialmente no que toca o modo feminino de domesticação do corpo, estritamente ligado à aquisição de bens e serviços em prol de um padrão beleza. Ela relata que durante uma viagem ao Marrocos encontrou mulheres que usavam a burca. Foi quando percebeu que as mulheres ocidentais também tinham sua versão da indumentária, as normas de conduta e beleza. Durante Fleshdance, somos interpelados por mulheres que querem transgredir aos condicionamentos estabelecidos.  Elas caminham de modo deselegante, se contorcem em movimentos assimétricos e tomam conta do espaço, dando vazão às infinitas possibilidades do corpo.
            Paralelamente ao estudo da obra de Bauman, o grupo se dedicou a aprofundar seu conhecimento sobre os órgãos e a maneira como influenciam os movimentos. Com base na pesquisa desenvolvida pelo Body-mind Centering de Massachutes, nos Estados Unidos (Principalmente o Livro Sensing, Feeling and Action), desenvolve-se uma coreografia que abre mão da premência dos ossos e dos músculos para buscar em rins, coração e intestino sensações e impulsos que possam reverberar pelo corpo.
            Estamos diante de uma coreografia que abre mão de movimentos que se concretizam através de vetores. Não se trata, portanto, de um corpo que desenha linhas no espaço, mas que se expande em três dimensões e toma conta do ambiente ao aumentar de volume. As dançarinas projetam-se e abarcam o que lhe circunda. Elas desenham uma dança hipnótica que abdica de qualquer precisão pré-concebida e conferem vida e vazão às vontades dos órgãos, pedindo que dialoguem com o exterior e transmitam o que queiram dizer.
            Mais especificamente, Fleshdance (ou a dança da carne, em uma tradução literal), se releva como um estudo sobre os pulmões. O espetáculo nos mostra como o respirar pode influenciar a forma como nos colocamos no mundo. Observa-se um jogo cênico onde espectador e artista entram em relação. A troca ocorre quando nos damos conta de que o ar que um de nós expele é o mesmo ar que o outro respira. Visivelmente, se cria uma relação de interação ao mesmo tempo inusitada e perturbadora e que contrasta com as relações que habitualmente mantemos com os outros citadinos. Será redundante apontar, portanto, que a cada apresentação do grupo um novo jogo é estabelecido.
            Ao juntarmos essas duas inspirações, uma mais técnica e outra mais teórica, perceberemos que se trata de um espetáculo onde os corpos das dançarinas se desprendem de seu uniforme social de posturas, olhares e respirações socialmente orientado. Revela-se ao espectador como o homem urbano evita respirações mais profundas, pois deseja evitar a troca com os milhões de desconhecidos da metrópole. Também se descobre como nosso corpo se limita a movimentos previsíveis e de fácil codificação, de forma a maximizar a padronização de posturas e agilizar a troca de mercadorias e bens.            
            Fleshdance cria um estado de inquietação onde o simples respirar se transforma em uma ação complexa e inquietante. Propõe corpos que possam resistir a um mundo que quer nos transformar em seres robóticos, homogeneizados e indiferentes aos outros. Transforma o ar que circunda o palco para que seja respirado pelo publico e possa transformar de alguma forma a maneira como nos colocamos no mundo do consumo. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário